sexta-feira, 5 de julho de 2024

Para Onde Vão os Guarda-Chuvas * Afonso Cruz



Que devastação Deus (seja ele qual for)! 

Que os livros nunca deixem de me surpreender (seja por terem histórias fantásticas, por estarem melodiosamente bem escritos, por passarem mensagens importantes ou por qualquer outro motivo). 


"Para Onde Vão os Guarda-Chuvas" tem poesia para lá do título e tem personagens que se agarram a nós pela sua vontade de não serem notadas. Tem tristeza, muita tristeza, ou melhor, talvez o mais correto seja dizer que deixa tristeza a quem o lê (pelo menos a mim). É uma tristeza bela e resignada e é daí que vem a devastação. É uma devastação enorme (há alguma devastação que não seja enorme?) que só pode trazer resignação. É uma resignação triste que nos faz entrar numa pescadinha de rabo na boca ou na busca infinita do cão pela sua cauda ou num "rodar perpétuo até àquele lugar impossível que é Deus, para o crente". 


Afonso Cruz é apaixonado por histórias de buscas que levam ao ponto de partida, "Toda a gente, quando viaja, não faz senão o mesmo que este cão que vê aqui a perseguir o rabo. Dá voltas pelo mundo para se ver a si e, quando não consegue, volta a tentar, viaja mais."


A miragem é aquele equilíbrio entre procurar longe ou perto, entre a ação e inação, entre a escarlatina e a transparência, entre a indecisão e a decisão.


"Isa, disse ele."


588 páginas

Companhia das Letras

TODOS

 

*Afonso Reis Cabral / O Meu Irmão
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*Afonso Cruz / O vício dos Livros / Os Livros que Devoraram o Meu Pai / Flores / Jesus Cristo Bebia Cerveja / Para Onde Vão os Guarda-Chuvas
--
*Alaa El Aswany / Os Pequenos Mundos do Edifício Yacoubian
--
*Albert Casmus / O Estrangeiro / A Queda
--
*Aldous Huxley / Admirável Mundo Novo
--
*Alessandro Baricco / Seda
--
*Alice Sebold / Visto do Céu
--
*Alona Kimhi / Susana em lágrimas
--
*Amin Maalouf / O Périplo de Baldassare
--
*Ana Amorim Dias / O que nunca um adulto de disse
--
*Ana Margarida Oliveira / Vates A.G.B.
--
*Anabela Mota Ribeiro / O Quarto do Bebé
--
*Anna Maxted / Que bagunça!
--
*Anne Perry / Caim seu irmão
--
*Anthony Doerr / Toda a Luz que Não Podemos Ver
--
*António Lobo Antunes / Eu Hei-de Amar uma Pedra / O Tamanho do Mundo
--
*António Mega Ferreira / Cartas de Casanova – Lisboa 1757
--
*Aravind Adiga / O Tigre Branco
--
*Arundhati Roy / O Deus das pequenas coisas / O Ministério da Felicidade Suprema
--
*Ayala Monteiro / A Rainha da Canela

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*Benedict Wells / O Fim da Solidão
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*Bernardine Evaristo / rapariga mulher outra
--
*Bernhard Schink / O Leitor
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*Bernardo Carvalho / Filho da Mãe
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*Bill Watterson / Calvin & Hobbes
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*Bohumil Hrabal / Eu que servi o Rei de Inglaterra

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*Carla Madeira / Tudo é Rio
--
*Carlos Ruiz Zafon / A Sombra do Vento / O Jogo do Anjo / Marina / A Trilogia da Neblina / O Prisioneiro do Céu
--
*Catherine Clément / Jesus na fogueira
--
*Catherine Mille / A vida sexual de Catherine Mille
--
*Carla Madeira / Tudo É Rio
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*Charles Bukowski / Correios
--
*Chimamanda Ngozi Adichie / Americanah
--
*Clarisse Lispector / A Paixão Segundo G.H.
--
*Clive Staple Lewis / As Crónicas de Nárnia (. O Sobrinho do mágico. O Leão, a Bruxa e o Guarda-Fatos. O Cavalo e o seu Rapaz. O Príncipe Caspian. A viagem do Caminheiro da Alvorada. O Trono de Prata. A Última Batalha)
--
*Cuca Canals / A hescritora
--
*C. J. Sansom / Fogo Negro
--
*Deborah Moggach / Febre das Tulipas
--
*Daniel Mason / O Afinador de Pianos
--
*Daniel Pennac / Como um romance
--
*Daniel Sampaio / Vagabundos de nós
--
*Daniel Steel / Destino
--
*Dan Brown / O Código Da Vinci / Anjos e Demónios / A Conspiração
--
*David Lodge / A vida em surdina
--
*David Mourão Ferreira / Um Amor Feliz
--
*Eça de Queirós / Os Maias / A Cidade e as Serras / A Relíquia
--
*Eduardo Lourenço / Mitologia da Saudade
--
*Elena Ferrante / A Amiga Genial
--
*Elif Shafak / 10 minutos e 38 segundos / A Bastarda de Istambul
--
*Elizabeth Strout / Olive Kittreidge
--
*Emma Becker / A Casa

--

*Emily Bronte / O Monte dos Vendavais
--
*E. L. James / As 50 Sombras (.de Grey. mais negras. livre)
--
*Ernest Hemingway / O Velho e o Mar
--
*Emma Donoghue / O Quarto de Jack
--
*Fernando Aramburu / Patria
--
*Fernando Pessoa / O Banqueiro Anarquista

--

*Filipe Melo / Balada para Sophie

--

*Fiódor Dostoyevski / O Idiota / O Sonho de Um Homem Ridículo
--
*Francisco Sousa Vieira / Os Homens que os Pássaros Comem
--
*Frank Kafka / A metamorfose
--
*Frank McCourt / As Cinzas de Angela
--
*Fred Vargas / Um Homem do Avesso

--

*Fredrik Backman / Um Homem Chamado Ove
--
*F. Scott Fitzgerald - O Grande Gatsby
--
*Gaby Hauptmann / Mulher procura homem impotente para relacionamento sério
--
*Gabriel Garcia Marquez / Cem Anos de Solidão
--
*Garth Risk Hallberg / Cidade em chamas
--
*George Orwell / O Triunfo dos Porcos / 1984
--
*George R. R. Martin / Sangue e Fogo – A História dos Reis Targaryen (2vol)
--
*Gonçalo Tavares / Estórias falsas / Jerusalém
--
*Gorki / A mãe
--
*Guilherme Duarte / Odeio Pessoas
--
*Gustave Flaubert / Madame Bovary
--
*Guy Hocquenghem / Éve
--
*Harper Lee / Mataram a Cotovia
--
*Haruki Murakami / Kafka à Beira-Mar / Em Busca do Carneiro Selvagem / Dança Dança Dança / Sputnik, Meu amor / A peregrinação do rapaz sem cor / O Impiedoso País das Maravilhas e o Fim do Mundo / Norwegian Wood / A Crónica do Pássaro de Corda / Sono
--
*Heinrich Harrer / Sete anos no Tibete
--
*Hermann Hesse / Siddhartha / Demian
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*Hervé le Tellier / A Anomalia
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*Hugo van der Ding / Vamos Todos Morrer / Vamos Todos Morrer Outra Vez
--
*H. G. Wells / A Guerra dos Mundos
--
*Ian Caldwell e Dustin Thomason / A Regra de Quatro
--
*Irvin D. Yalom / Quando Nietzsche Chorou
--
*Isabel Allende / A Casa dos Espíritos / A Cidade dos Deuses Selvagens / O Reino do Dragão de Ouro / O Bosque dos Pigmeus / Filha da Fortuna / O Retrato a Sépia / Zorro – O começo da lenda / A ilha debaixo do mar
--
*Isabela Figueiredo / A Gorda / Um Cão no Meio do Caminho
--
*Italo Calvino / A Atalho dos Ninhos de Aranha / Se um Viajante Numa Noite de Inverno / As Cidades Invisíveis
--
*Itamar Vieira / Torto Arado
--
*James Redfield / A Profecia Celestina
--
*Jane Austen / Orgulho e Preconceito / Persuasão
--
*Jeanine Cummins / Terra Americana

--

*Jenny Erpenbeck / Eu Vou, Tu Vais, Ele Vai
--
*Jerome K. Jerome / Três homens num barco
--
*Jim Shepard / O Livro de Aron
--
*Joanne Harris / Chocolate / Vinho Mágico / 5 Quartos de laranja / A Praia Roubada / Sapatos de Rebuçado
--
*João Paulo Cotrim / Vencer os Medos
--
*João Ricardo Pedro / O teu rosto será o último
--
*Joel Dicker / A verdade sobre o caso Harry Quebert / O enigma do quarto 622 / Um animal selvagem
--
*John Ford / Má sorte que ela fosse puta
--
*John Ramster / Louco por saias
--
*Jordi Sierra i Fabra / Kafka y la Muñeca Viajera
--
*Jorge Amado / Capitães da Areia
--
*José Cardoso Pires / O Delfim
--
*José Luís Peixoto / Cemitério de Pianos / Cal / Nenhum Olhar / Livro / Abraço / Dentro do Segredo / Galveias / Almoço de Domingo / Autobiografia
--
*José Manuel Saraiva / Rosa Brava / Aos olhos de Deus
--
*José Mauro de Vasconcelos / O Meu Pé de Laranja Lima
--
*José Rodrigues dos Santos / Codex 632 / A Fórmula de Deus / O Sétimo Selo / A Vida num Sopro / Fúria Divina
--
*José Saramago / Memorial do Convento / Jangada de pedra / Ensaio Sobre a Lucidez / Evangelho segundo Jesus Cristo
--
*Jrr Tolkiem / O Senhor dos Anéis (. A irmandade do anel. As duas torres. O regresso do Rei)
--
*Juan Rulfo / Obra Reunida. Pedro Páramo
--
*Júlio Dantas / A Ceia dos Cardeais
--
*Júlio Dinis / As Pupilas do Senhor Reitor / A Morgadinha dos Canaviais / Serões da Província
--
*Jung Chang / Cisnes Selvagens
--
*J. K. Rowling / Harry Potter (. e a Pedra Filosofal. e a Câmara dos Segredos. e o Prisioneiro de Azkaban. e o Cálice de Fogo; e a Ordem da Fénix. e o Príncipe Misterioso. e os Talismãs da Morte) / Uma morte súbita
--
*J. M. Coetzee / Desgraça
--
*J. M. G. le Clézio / O Deserto
--
*Kamila Shamsie / Sombras queimadas
--
*Kim Edwards / Um Brilho no Escuro
--
*Ken Follet / Triologia o Século (. Livro 1 – A Queda dos Gigantes. Livro 2 – O Inverno do Mundo. Livro 3 – No Limiar da Eternidade)
--
*Kyoichi Katayama / Um Grito de Amor Desde o Centro do Mundo
--
*Laura Esquivel / Mais veloz do que o desejo / Como água para chocolate
--
*Lawrence Durrel / Justine
--
*Leal Coutinho / Menina coragem
--
*Leão Tolstoi / A felicidade conjugal
--
*Leila Slimani / O perfume das flores à noite
--
*Lewis Carroll / Aventuras da Alice no País das Maravilhas
--
*Lilian Lee / Adeus, Minha Concubina
--
*Luís Sepulveda / História de uma Gaivota e do Gato que a ensinou e voar / O Velho que lia Romances de Amor
--
*Lygia Bojunga Nunes / A Bolsa Amarela
--
*Machado de Assis / Dom Casmurro / Memórias Póstumas de Brás Cubas
--
*Maggie O’Farrel / Antes de nos Conhecermos
--
*Margarida Rebelo Pinto / Não há coincidências / Sei lá
--
*Maya Angelou / Eu sei por que o pássaro canta na gaiola
--
*Maria Helena Ventura / Afonso O Conquistador
--
*Mário de Carvalho / A Arte de Morrer Longe
--
*Mário Vargas Llosa / Conversa na Catedral / Pantaleão e as Visitadoras / Travessuras da Menina Má / O Herói Discreto / Cinco esquinas / Duas Solidões. O Romance na América Latina (Gabriel García Márquez)
--
*Mário Zambujal / Já não se escrevem cartas de amor
--
*Marion Zimmer Bradley / Filha da noite / Brumas de Avalon (. A Senhora da Magia. A Grande Rainha. O Gamo – Rei. O Prisioneiro da Árvore) / A Casa da Floresta / A Senhora do Trillium /
A Gratidão dos Reis / Aterragem em Darkover / Senhora de Avalon / Sacerdotisa de Avalon / Presságio de fogo / A Herdeira / A Queda da Atlântida
--
*Mark Twain / As aventuras de Tom Sawyer
--
*Markus Zusak / A Rapariga que Roubava Livros / Nada menos que um milagre
--
*Maurice Leblanc / Arsène Lupin - Cavalheiro Ladrão / Arsène Lupin – contra Herlock Sholmes
--
*Mia Couto / O outro pé da sereia / Venenos de Deus e Remédios do Diabo / Jesusalém
--
*Michel Houellebecq / A possibilidade de uma ilha / Submissão
--
*Michelle Lovric / Carnaval em Veneza (2 vol.)
--
*Miguel Sousa Tavares / Equador / O Segredo do rio / O Rio das Flores
--
*Mike Gayle / A namorada dos meus sonhos
--
*Mikhail Bulgakov / Margarita e o Mestre
--
*Miriam Ali / Sem Piedade
--
*Mitch Albom / As Terças com Morrie  
--
*Moita Flores / O carteirista que não fugiu a tempo
--
*M. Scott Peck / O Caminho Menos Percorrido
--
*Naguib Mahfouz / O Cairo Novo
--
*Neil Jordan / Amanhecer com mostro marinho
--
*Nicholas Sparks / Um momento inesquecível / A melodia do adeus
--
*Ocean Vuong / Na Terra Somos Brevemente Magníficos
--
*Oki Toshio / A Beleza e a Tristeza
--
*Olga Tokarczuk / Conduz o teu arado sobre os ossos dos mortos
--
*Orham Pamuk / Jardins da Memória
--
*Pascal Mercier / Comboio Nocturno para Lisboa
--
*Paolo Giordano / A solidão dos números primos
--
*Paul Auster / Invisível
--
*Paulo Coelho / Verónica decide morrer / Na margem do rio Pietra... / Onze minutos / Alquimista
--
*Patrick O’Brian / A Fragata «Surprise»
--
*Patrick Suskind / O Perfume

--

*Penelope Fitzgerald / A Livraria
--
*Pepetela / O Planalto e a Estepe / Os Predadores / O Terrorista de Berkeley
--
*Philip Roth / A Mancha Humana
--
*Possidónio Cachapa / Viagem ao coração dos pássaros / Rio da Glória / Materna Doçura
--
*Raj Khamal Jah / A manta azul
--
*Ricardo Menéndez Salmón / A Ofensa
--
*Richard Zimler / O Último Cabalista de Lisboa / Insubmissos
--
*Roderick Gordon & Brian Williams / Túneis: O Segredo da Cidade Eterna
--
*Rosa Lobato Faria / O prenúncio das águas / As Esquinas do Tempo
--
*Sándor Márai / As Velas Ardem Até ao Fim
--
*Salman Rushdie / Luka e o Fogo da Vida
--
*Sebastião da Gama / Diário
--
*Sébastien Japrisot / Um longo domingo de noivado
--
*Simon Armitage / O Homenzinho verde
--
*Simon Cox / O Código da Vinci – Descodificado
--
*Sophia de Mello Breyner Andresen / O Cavaleiro da Dinamarca / Contos Exemplares
--
*Stephenie Meyer / Nómada
--
*Suleika Jaouad / Entre dois Reinos
--
*Susana Clarke / Jonathan Strange e o Sr. Norrel
--
*Susana Tamaro / Vai onde te leva o coração / Cada palavra é uma semente
--
*Sveva Casati Modignani / Baunilha e chocolate / Qualquer coisa de bom / O Jogo da Verdade
--
*Tiago Salazar / O Pirata das Flores
--
*Tina Grube / Os homens são como chocolate / Estou-me nas tintas para homens bonitos
--
*Tom Sharpe / O triunfo do bastardo

--

*Toni Morrison / Beloved
--
*Umberto Eco / O Nome da Rosa
--
*Valérie Perrin / A Breve Vida das Flores / Três
--
*Valter Hugo Mãe / a máquina de fazer espanhóis / A Desumanização / Homens imprudentemente poéticos / O filho de mil homens
--
*Victor Alamo de La Rosa / O Ano da Seca
--
*Victoria Hislop / A Ilha / A Arca
--
*Virginia Woolf / Um Quarto Só Seu
--
*Vladimir Nabokov / Lolita
--
*Waris Dirie / Flor do deserto
--
*William Faulkner / O Som e a Fúria
--
*William Golding / O Deus das Moscas
--
*Yann Martel / A vida de Pi / Beatriz e Vírgilio / As Altas Montanhas de Portugal
--
*Yasunari Kawabata / A Beleza e a Tristeza
--
*Zizi Clemmons / O que perdemos

 

sábado, 30 de março de 2024

1984 {} George Orwell


Altura estranha para ler este livro. Para ajudar, enquanto o lia esbarrei com o "V for Vendetta" e aconteceu o atentado de Moscovo, seguido da teoria hilariante de Putin. É só olhar (nem precisa de ser com atenção) e ver que de uma forma mais ou menos semelhante o 1984 acontece nos dias de hoje em alguns pontos do Planeta. 

Se acho que é mau? Senti pânico ao imaginar um telecrã (que é um espião e uma abolição do silêncio e da paz) dentro de cada casa. 

Imaginar pessoas sem a sua individualidade numa sociedade é para mim uma violência inadmissível. Não quero, não quero, não quero viver num sítio assim. 

Se sinto algum tipo de curiosidade sobre como é que que se chega ali e como os ditadores funcionam lá no íntimo? eeeeehhh não é preciso ser muito inteligente para saber que aquela gente cheira mal... 

Fiquei agarrada ao livro na segunda página porque existiu sempre em Orwel uma preocupação estética enquanto se  comprometeu a dar voz aos seus sentimentos de militantismo e de injustiça. 

Não há ali nada de bonito, mas a forma como está escrito... é uma obra de arte.


"Winston achou-a, pela primeira vez, bela. Nunca antes lhe passara pela cabeça que o corpo de uma mulher de cinquenta anos, mostruosamente inchado por gravidezes e depois endurecido, maltratado pelo trabalho até ficar com a textura áspera de um nabo velho, pudesse ser belo. Mas era-o, de facto, e afinal de contas, pensou ele, porque não? O corpo sólido, sem contornos, semelhante a um bloco de granito, e a pele vermelha, rugosa, estavam para o corpo de qualquer rapariga como o fruto da roseira está para a rosa. Porque é que o fruto havia de ser menos prezado do que a flor?"


Antígona

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Eu Vou, Tu Vais, Ele Vai () Jenny Erpenbeck


Li mais de metade deste livro num dia de sol de inverno de frente para o mar. Um dia de um magnífico pôr do sol, um dia de paz, um dia perfeito, um dia fácil... porque é que não pode ser um dia fácil para todos?

"... a respiração de um planeta é muito mais lenta que a respiração de qualquer ser humano. Se vestirmos calças e casacos de uma loja de roupa doada, uma camisola de marca, um vestido caro ou barato, ou um uniforme com capacete e viseira, por baixo dessa roupa estamos sempre nus e, se tudo correr bem, teremos tido prazer em estar ao sol ou ao vento, na neve ou na água, em ter comido ou bebido isto ou aquilo, talvez em termos amado alguém e em termos sido amados, antes de morrermos. O que no mundo cresce e flui é mais do que suficiente para todos..."

O fotógrafo Sebastião Salgado zangou-se com a humanidade depois do seu périplo por África, acredito que Saramago estava zangado com a humanidade quando escreveu o Ensaio Sobre a Cegueira. Lembrei-me destes dois exemplos enquanto lia este livro porque é muito fácil entender e sentir essa zanga quando o lemos.

Aquilo que podemos dizer sobre a história deste livro é quase um lugar comum (infelizmente), os imigrantes/refugiados que procuram o continente Europeu trazem com eles histórias de amor pela terra natal misturadas com a  sensação de miséria e em muitos casos com traumas de episódios violentos. Mas acrescento que nós, Europeus de pele clara, somos literalmente uns copos de leite ao pé desta resiliência em forma de gente... Quantos dias teríamos aguentado aquele caminho?? 

Não há soluções fáceis para este flagelo, mas que temos uma cota parte de responsabilidade nas causas de tudo isto não há dúvida. Agora temos as consequências no nosso país, na nossa cidade, no nosso banco de jardim e somos chamados a ter responsabilidade sobre elas. No fundo no fundo estão a obrigar-nos a ser adultos e isso é uma chatice. 

É assustadora a violência que existe em tudo, em todo o lado ao mesmo tempo. Talvez faça sentido uma frase que ouvi uma vez num documentário sobre a nossa espécie: "Nós, os que cá estamos agora, somos os filhos dos assassinos."


259 páginas

Relógio D'Água

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Tudo É Rio # Carla Madeira


Acho, com alguma certeza, que quando descrevemos ou classificamos as pessoas com base nos constantes e eternos julgamentos do bom ou mau, do certo ou errado, tudo fica sem cor. 
Está lá o Branco, com a pureza, a virgindade, a correção dos modos, com o que é aceite... Fica reservado para o Preto tudo o resto, tanta coisa... Nem é só, aquela famosa gigante zona cinzenta que se perde, perdem-se todas as cores, todas as possibilidades de ver beleza em sítios diferentes. 
Carla Madeira tem todo um arco-íris no seu rio, a tranquilidade azul da tia Duca, a luxúria vermelha de Lucy, a luz dourada de Aurora, a ternura rosa de Dalva... 
É um livro/rio cheio de vida, de querer viver, e isso tem sempre cor. É um rio maravilhoso.

"Aprendeu que a verdade não tem dono, que é duro demais existir e que ninguém precisa de ajudar ninguém a sofrer. O sofrimento vem sozinho, tem pernas, mais cedo ou mais tarde ele aparece; o que a gente tem de buscar é a alegria, essa esconde-se delicada na correria dos dias, não se oferece de pronto, quer ser encontrada, surpreendida, amada."

"Algumas vezes as mudanças acontecem na marra. Uma guilhotina afiada corta as nossas mãos, e todas as rédeas escapam. É o que pensamos ter acontecido, até que a gente se dá conta de que nunca houve rédeas. Ninguém monta na vida. Brincamos de escolher, brincamos de poder conduzir o destino. Precisamos dessa ilusão para viver os dias de antes, dias em que podemos tudo só porque pensamos poder, e então a vontade do que está fora da gente joga a sua sombra densa e pegajosa. Ficamos prisioneiros do que não queremos muito antes de morrer."

194 páginas
Particular 

sábado, 24 de junho de 2023

Três ֍ Valérie Perrin

Quando acabei "A Breve Vida das Flores" poderia ter começado logo o "Três" mas não o fiz.

Não quis que a sensação maravilhosa, com que Valérie me tinha inebriado, continuasse com outras personagens. Decidi meter outros livros pelo meio e ao mesmo tempo tentar prolongar aquela sensação tão boa. 

Também é verdade que tinha medo de descobrir que este novo livro não me traria a mesma emoção.

Mas trouxe... E mais uma vez fiquei abismada com a brutalidade com que a doçura desta escritora me atingiu. De repente percebo que estou dentro da história, que sinto as emoções de cada um dos três, que as sinto até às entranhas... 

Fico novamente com a vontade de prolongar este inebriamento... não sei se o vou conseguir... mas sei que poderei sempre resgatar uma réstia quando me lembrar do "Três". 

"E depois há o verão. O verão pertence a todas as lembranças. É intemporal. É o cheiro que é mais duradouro. Que se agarra às roupas. Que se busca toda a vida. Os frutos mais doces, a brisa marítima, as bolas de Berlim, o café escuro, o protetor solar, o pó de arroz das avós. O verão pertence a todas as idades. Não há infância nem adolescência. O verão é um anjo."

"Depois de Emmanuel, Nina percebeu que não se constrói nada com ninguém, nem para ninguém. Uma existência funda-se por si e se, por milagre, se encontra uma alma um pouco irmã, é um bónus."

461 páginas 
Editorial Presença 

segunda-feira, 22 de maio de 2023

A Breve Vidas das Flores ֍ Valérie Perrin


Enquanto li este livro andei inebriada com a doçura da escrita de Valérie, com a doçura da energia de Violette. 
Quando crescer quero ser como ela, quero ser generosa com os que me rodeiam, com os que me procuram, com os que me encontram. Quero ter a noção da maldade e da pequenez dos outros nos momentos em que o são, mas conseguir não alimentar o rancor dentro de mim e conseguir também ver os outros para além desses momentos. 
Tão difícil, tão difícil...  
Valérie obrigada pela Violette, obrigada por esta bela mulher que cuida dum cemitério com beleza e amor e tem dois guarda-fatos, um para ela e outro para os outros.

"Subo ao quarto e abro o guarda-fatos de inverno para enfiar um roupão. Tenho dois guarda-fatos. Um a que chamo de "inverno" e outro, de "verão". Os nomes não têm nada a ver com as estações, mas com as circunstâncias. O guarda-fatos de inverno só contém roupa clássica e sombria, destinada aos outros. O guarda-fatos de verão só contém roupa clara e colorida, destinada a mim. Uso o verão por baixo do inverno e dispo o inverno quando estou sozinha."

O que vou fazer agora sem ela??? 

Editorial Presença


 



segunda-feira, 20 de março de 2023

Almoço de Domingo // José Luís Peixoto

Neste Almoço de Domingo celebra-se o amor à terra, celebra-se o respeito a outras terras, celebra-se a capacidade de sonhar, celebra-se a justiça de se conseguir chegar onde se quer quando se trabalha para isso, celebra-se o saber ser rico, celebra-se o ser uma palavra segura, amiga e positiva em cada momento, celebra-se o ser amigo, pai, filho, sobrinho, irmão, marido, celebram-se 90 anos de tudo o que é realmente importante... 

... celebra-se a memória e cria-se a imortalidade de alguém que é um exemplo e que merece ser imortalizado "apenas e só" por tudo o que representa e fez. 

"Este homem fala, tem um fio de prata colado à pele do peito e, de repente, o embate. O rapaz aparece na frente do automóvel, o seu corpo é todo feito de braços e de pernas. Depois do estrondo da chapa, há a confusão dos braços e das pernas, o corpo enrolado a avançar sobre o capô e para-brisas, o travão a fundo. Quando o carro se imobiliza, o silêncio é terrível, dura um segundo. O homem está aterrorizado, não quer ouvir quando lhe digo para irmos ver, mas abro a porta, não espero. O rapaz está caído lá ao fundo. Começo a caminhar, passos seguidos e uniformes. Não sei que idade tem, este rapaz é um menino, não se mexe. O homem da empresa de exportação está a meio caminho entre o corpo caído e o automóvel, mal estacionado. Há outras crianças, o espanto de outras crianças, há barracas na paisagem, algumas quase à beira da estrada, há árvores gastas, há galinhas e pintos. O homem diz-me para irmos embora, diz que eles nos vão matar. Respondo-lhe que não vamos embora."


Quetzal

257 páginas 

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Um Cão no Meio do Caminho = Isabela Figueiredo

  



Gostei muito de conhecer o José Viriato, gostei mesmo. Gosto da sua paixão pelo lixo dos outros sem deixar de ser pragmático (tão eu), gosto da sua paz, da paz da sua rotina, da paz que ele coloca na sua rotina, claro que gosto do amor que tem aos animais e gosto dele porque é boa pessoa.

O livro tem mais gente, tem uma vizinha acumuladora, uma avó à antiga, uma mãe professora e um pai comunista (descrições tão simplistas, eu sei, nada justas). Mas para mim foi o José Viriato que ocupou cada página com a sua forma de estar na vida. 

"Fui bom aluno, é certo, mas nunca gostei da escola. Nunca me conformei com as regras. Tive chatices com colegas e professores. Nunca me deixei contagiar por hábitos com que não concordasse. A maior parte das situações em que somos colocados merecem um veemente não. Eu não faço isso. Não colaboro. Não vou. Fui esse rapaz. Dizia não concordo, não é correto. As pessoas tudo aceitam por educação, para não ter problemas. É a melhor forma de viver. Agora percebo."

Terei de concordar em discordar com o José Viriato nesta última parte, para mim não é a melhor forma de viver, pode ser a mais "fácil", mas não é a melhor. Às vezes o preço, por dizermos esse não, é alto... a exclusão... a solidão... mas eventualmente encontraremos pessoas perdidas como nós e conseguiremos acreditar naquela imagem romântica de "que ninguém entra na nossa vida por acaso". 


Caminho 

292 páginas 



terça-feira, 27 de dezembro de 2022

O Evangelho segundo Jesus Cristo @ José Saramago


Não sei quantas foram as vezes que já li, ouvi ou vi a história de Jesus. Sei que gostei de o conhecer em todas as versões. Não sei ainda onde estão os limites do quanto a religião, que foi criada depois da sua morte, me marcou e me moldou.

É impossível dissociar Jesus da instituição Igreja Católica e ao mesmo tempo podemos claramente ver o que é um e o que é a outra. É impossível não aceitar que se é a história mais conhecida do mundo, e uma história bonita, deixou também um rastro de sangue e sofrimento.

E Saramago diz-nos que esse sangue só existiu porque para Deus os fins justificam os meios, porque a sua vontade de conquistar o mundo a outros Deuses se sobrepôs a todo o sofrimento que isso causou.

Saramago não é meigo para o Pai de Jesus, não lhe perdoa a ambição e expõe o seu lado caprichoso e corriqueiro:

"Senhor, diz-me, Cala-te, não perguntes mais, a hora chegará, nem antes nem depois, e então saberás o que quero de ti, Ouvir-te, meu Senhor, é obedecer-te, mas tenho de fazer-te ainda uma pergunta, Não me aborreças, Senhor, é preciso, Fala, Posso levar a minha ovelha, Ah, era isso, Sim, era só isso, posso, Não, Porquê, Porque ma vais sacrificar como penhor da aliança que acabo de celebrar contigo, Esta ovelha, Sim, Sacrifico-te outra, vou ali ao rebanho e volto já. Não me contraries, quero esta, "

Deve ter sido o tom que fez com que a Igreja Católica também não perdoasse Saramago. Isso e o facto de Jesus e Maria Madalena serem amantes (no sentido mais belo que esta palavra pode ter, diga-se de passagem). 

Mas é apenas um livro, maravilhosamente bem escrito, mas apenas um livro escrito por um homem... tal como a Bíblia, um livro escrito por homens. 


Caminho

445 páginas 

domingo, 27 de novembro de 2022

O Tamanho do Mundo & António Lobo Antunes

 


 27 de novembro era (é) o dia do meu pai. Tão próximo do meu dia, mas já de signos diferentes e, no entanto, percebo mais agora, com boas coisas em comum

Hoje, dia 27 de novembro, terminei “O Tamanho do Mundo” que fala muito de um pai que não era, que não foi perfeito…

… mas que apesar dessa imperfeição merecem uma pequena homenagem… se um empurrava a filha no baloiço para que tocasse nas nuvens com os pés, o outro ensinou a filha a nadar e transmitiu-lhe o amor pela água… ambos foram ausentes de forma diferente, ambos marcaram de forma decisiva as filhas… “que pena não ter entendido o amor que apesar de você não saber dar-mo recebi de si”…

Lá está António Lobo Antunes a colocar tanto amor numa só frase.

(sim, a pequena homenagem já acabou, não é confortável mostrar essa parte de mim)

Este blog começou por causa de Lobo Antunes, pela enorme estupefação que senti quando o li, não imaginava que alguém escrevesse assim… sobre o amor. Sim, para mim, Lobo Antunes escreve sobre o amor e recupero a primeira frase que escrevi em 2004 “ Um livro repleto de personagens complexas que acima de tudo precisam de amor e tentam encontrá-lo, algumas não da melhor forma.

Eu que não fiz nada para isso, sinto orgulho por António Lobo Antunes ser português, por escrever na nossa língua.

“A solidão mede-se pelos estalos dos móveis à noite quando a poltrona em que me sento de súbito desconfortável, enorme, e os objetos aumentam nos naperons, inclinados para mim a escutarem, a quem terá pertencido a santinha da talha a que falta um dos dedos, que garganta tosse dentro da minha a chamar, que segredos são estes de que não entendo as palavras, o que desejam ao certo vindos de uma gaveta empenada, cheia de laços de cabelo desbotados e fotografias antigas”

284 páginas

D. Quixote

A Anomalia - Hervé Le Tellier

 


Eu não sou nenhuma especialista em literatura ou em escrita, mas consigo perceber a diferença de energia entre livros de tempos diferentes.

Assim como nós analisamos e categorizamos a escrita de séculos mais antigos ou mesmo a escrita do século passado, acredito que a escrita de hoje também será analisada e categorizada. E pergunto-me, o que dirão sobre ela?

Eu adoro o embalo da escrita contemporânea, esta, cada vez mais frequente, forma de escrever poesia em forma de prosa, essa bonita forma de dizer tanto dizendo tão pouco de forma clara.

“Miesel tem uma superstição: no bolso das calças de ganga, leva sempre uma peça de lego, amais comum, a que tem dois por quatro botões, vermelha-viva. Provém da muralha do castelo que ele e o pai construíram no seu quarto, quando era pequeno. Houve o acidente, na obra, e a maquete ficou por acabar, pero da sua cama. O menino observava amiúde, silencioso, as ameias, a ponte levadiça, as figuras, a masmorra. Continuar sozinho a construção do edifício teria sido equivalente a aceitar a morte, portanto mais valia desmontá-lo. Um dia, soltou um tijolo da muralha, enfiou-o no bolso e desmontou o castelo. Isto há trinta e quatro anos.”

“A Anomalia” é um livro viciante, que nos agarra desde a primeira página até à última. A ideia do livro é brilhante e, com uma escrita deliciosa, ficamos agarrados à vida dos passageiros de um específico voo Paris – Nova Iorque. Não se pode escrever muito sobre o livro sem ser spoiler e por isso nada melhor do que o ler… vale mesmo a pena.


O Leitor - Bernhard Schlink // O Livro de Aron - Jim Shepard

 


O Holocausto sempre me causou uma grande impressão, acho que é o mais comum e o mais normal, não me sinto absolutamente nada especial por tudo aquilo me causar tanta repulsa, que outra sensação poderia causar?

Nunca procurei por histórias, até evitei algumas (como o Diário de Ann Frank), todos os filmes que vi e livros que li, foram porque me vieram parar às mãos sem eu os pedir. Este verão foram estes dois... 

Sempre me perguntei como é que somos  aqueles que estando num engarrafamento há uma hora e desejosos de chegar a casa, não hesitamos em chegar o carro para o lado quando ouvimos  sirenes de uma ambulância, mas também somos os responsáveis pelo holocausto... 

A massa de seres que mostra um comportamento solidário e empático com o estranho que vai dentro daquela ambulância, e aquela pessoa pode ser um ladrão, um assassino, um violador, um pedófilo. É a mesma massa de seres que  assistiu e/ou participou na matança de meros e comuns mortais (incluindo crianças) judeus. 

É este grande enigma que "O Livro de Aron" me relembra, como podemos ser tão bons e tão maus, ou melhor tão empático e tão indiferentes??
"O Livro de Aron" mostra a evolução da perseguição, as primeiras restrições de movimentos e de direitos, a formação dos guetos para judeus, a extinção dos diretos básicos (comida, calor) e só depois o extermínio, quando já estavam no limite da sobrevivência. Atrevo-me a dizer que foi esse avanço progressivo nas medidas que ditou o seu sucesso. Isso e o silêncio dos não perseguidos.

"O Leitor" trouxe-me algo que nunca tinha pensado. E depois de tudo ter acabado, como é que os não perseguidos conseguiram manter a cabeça erguida? Como lidaram com o terrível sentimento de vergonha de terem feito parte daquela história, nem que tenha sido "apenas" como figurantes? Como é que contaram o que aconteceu aos seus filhos, como é que explicaram o seu silêncio/envolvimento? 

Porque nem os judeus foram completamente dizimados nem os seus carrascos o poderiam ser depois. Mas tiveram que voltar a viver todos em paz depois da guerra acabar...