segunda-feira, 20 de março de 2023

Almoço de Domingo // José Luís Peixoto

Neste Almoço de Domingo celebra-se o amor à terra, celebra-se o respeito a outras terras, celebra-se a capacidade de sonhar, celebra-se a justiça de se conseguir chegar onde se quer quando se trabalha para isso, celebra-se o saber ser rico, celebra-se o ser uma palavra segura, amiga e positiva em cada momento, celebra-se o ser amigo, pai, filho, sobrinho, irmão, marido, celebram-se 90 anos de tudo o que é realmente importante... 

... celebra-se a memória e cria-se a imortalidade de alguém que é um exemplo e que merece ser imortalizado "apenas e só" por tudo o que representa e fez. 

"Este homem fala, tem um fio de prata colado à pele do peito e, de repente, o embate. O rapaz aparece na frente do automóvel, o seu corpo é todo feito de braços e de pernas. Depois do estrondo da chapa, há a confusão dos braços e das pernas, o corpo enrolado a avançar sobre o capô e para-brisas, o travão a fundo. Quando o carro se imobiliza, o silêncio é terrível, dura um segundo. O homem está aterrorizado, não quer ouvir quando lhe digo para irmos ver, mas abro a porta, não espero. O rapaz está caído lá ao fundo. Começo a caminhar, passos seguidos e uniformes. Não sei que idade tem, este rapaz é um menino, não se mexe. O homem da empresa de exportação está a meio caminho entre o corpo caído e o automóvel, mal estacionado. Há outras crianças, o espanto de outras crianças, há barracas na paisagem, algumas quase à beira da estrada, há árvores gastas, há galinhas e pintos. O homem diz-me para irmos embora, diz que eles nos vão matar. Respondo-lhe que não vamos embora."


Quetzal

257 páginas