segunda-feira, 6 de setembro de 2021

A Casa Ꚛ Emma Becker

 

Emma Becker decide tornar-se prostituta por dois grandes motivos, pelo permanente fascínio que sempre sentiu pelas prostitutas e para escrever sobre o assunto, sobre elas, sobre si e sobre o fascínio por elas.

Confesso que fiquei surpreendida pela respeitabilidade e seriedade com que este livro tem sido apresentado, não porque achasse, à partida, que não o merecesse, mas porque até aos dias de hoje, a profissão mais antiga do mundo, não ganhou respeitabilidade. Emma teve as mesmas dúvidas, “Quão precária me parecia a minha situação! Os meus objetivos nobres, a minha ideia de superar o bordel haviam-se esfumado, deixando apenas lugar para a verdade nua e crua a que nem eu nem as pessoas que me rodeiam poderíamos escapar: tinha trabalhado num bordel. Bem podes escrever todos os livros que quiseres, eis a única coisa que reterão do teu CV, sua espertalhona.”. Mas depois de o ler, não há como não o respeitar ou levar a sério.

“A Casa” está soberbamente bem escrito. De cima dos seus 31 anos, Emma apresenta uma escrita culta, inteligente em vários sentidos, cativante, envolvente e riquíssima em tantas análises do mundo, da sociedade, do ser humano, do ser mulher. Fiquei assombrada com a magnitude com que a mulher é apresentada. Somos tão dignificadas neste livro, somos tão respeitadas… e sim, somos todas, acreditem… ao demonstrar todos os clichés daquilo que uma prostituta é, e ao acrescentar-lhes tantas dimensões quantas aquelas que julgamos impossível, Emma eleva a nossa beleza, sensualidade e complexidade.

E que fique claro que eu não elevo este livro, porque acho a experiência cool, ou mega atual, ou hipster ou porque promove a legalização da prostituição (até porque acho que não promove e eu nem tenho uma opinião completamente formada sobre isso). Não!! Elevo “A Casa” pela forma como Emma decidiu escrever a sua experiência; elevo-o porque não possui uma única generalização, não possui um único lugar-comum. Elevo-o porque na sua demanda, Emma só se quer descobrir e compreender, e fá-lo com tanto amor pelas mulheres que, para mim, deixa uma sensação de que nos devemos pura e simplesmente aceitar e viver felizes com a nossa grandeza.

“Não consigo reler nem um dos meus livros sem me aperceber de que só escrevei sobre mulheres. Sobre o facto de eu própria ser uma e sobre as inúmeras formas de que ser mulher se reveste. E será, sem dúvida, a obra da minha vida: matar-me a querer descrever este fenómeno, aceitando a sensação de que em algumas centenas de páginas só avancei meio centímetro e procurando ficar satisfeita com esse meio centímetro como se de uma importante descoberta se tratasse.”


Casa das Letras

segunda-feira, 5 de abril de 2021

Ensaio sobre a Lucidez → José Saramago



 E se de uma forma espontânea, ou pensada, ou calculada, ou combinada, grande parte da população votasse em branco numas eleições??

José Saramago tem, na minha opinião, alguns dons, o inegável dom da escrita é um deles. Os seus livros são “coisas” inteligentes e acutilantes, onde muitos pontos finais, parágrafos e travessões não estão presentes, nem fazem falta, onde se salta de diálogos para reflexões gramaticais, contextuais, descritivas.

Outro dos dons é a capacidade de ter fantásticas ideias para criar as suas estórias. Poderíamos começar logo por duvidar, e eu seriamente duvido, sobre a possibilidade de conseguirmos mobilizar mais de 80% da população a levantar a mesma bandeira política. Mas por isso é que Saramago é tão maravilhosamente bom, porque ao mesmo tempo que tem a coragem e a capacidade de mostrar o quanto o ser humano pode ser absolutamente abominável, e este lado negro agarra-se a nós quando o lemos e sentimo-nos (eu sinto-me) sem qualquer esperança no futuro da nossa espécie, também consegue mostrar o quanto conseguimos ser genuinamente bons, o quanto conseguimos ser genuinamente empáticos, o quanto conseguimos perceber que se abrirmos mão do nosso carater deixamos de ser quem somos e isso não vale a pena, este lado luminoso é tão real e tão sentido que nos sentimos (eu sinto-me) confortados e “quentinhos”. Para mim este é o dom mais precioso de José Saramago, o equilíbrio entre a escuridão e a luz, a relatividade com que ele mergulha nos dois é desarmante, não há música de suspense antes de um mau momento, não existem fogos de artifício antes dos bons momentos, existe tudo e cada coisa na mesma linha de importância.

Mas, e se de uma forma espontânea, ou pensada, ou calculada, ou combinada, grande parte da população da capital de um país votasse em branco numas eleições?

Não é bonita a reação dos governantes, a ânsia por manter e ganhar mais poder pode fazer coisas assustadoras.

A democracia é colocada em perigo com tantos votos em branco?

“que os direitos só o são integralmente nas palavras com que tenham sido enunciados e no pedaço de papel em que hajam sido consignados, quer ele seja uma constituição, uma lei ou um regulamento qualquer, compreendereis, oxalá convencidos, que a sua aplicação desmedida, inconsiderada, convulsionaria a sociedade mais solidamente estabelecida, compreendereis, enfim, que o simples senso comum ordena que os tomemos como mero símbolo daquilo que poderia ser, se fosse, e nunca como sua efectiva e possível realidade. Votar em branco é um direito irrenunciável, ninguém vo-lo negará, mas tal como proibimos às crianças que brinquem com o lume, também aos povos prevenimos de que vai contra a sua segurança mexer na dinamite.”

Mas é colocada em causa e é caricaturada com a resposta dada!

 

Prémio Nobel de Literatura 1998

 

329 páginas

Caminho

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

rapariga mulher outra X Bernardine Evaristo


 

O feminismo sempre foi um tema complexo…

“as feministas radicais queriam áreas exclusivas para as mulheres, que constituiriam uma zona autónoma autorregulada

as feministas radicais lésbicas queriam áreas separadas das feministas radicais não lésbicas, as quais constituiriam uma segunda zona autónoma autorregulada

as feministas radicais lésbicas negras queriam o mesmo, com a ressalva adicional de não entrarem lá brancos fossem de que género fossem”

… porque basicamente as mulheres nunca se conseguiram entender.

 

Por continuar a ser um tema tão atual e tão necessário, confesso que fiquei um bocadinho chateada quando percebi que esta crispação feminina estava muito presente no livro, confesso que senti alguma desilusão por muitas das mulheres presentes usarem a sua individualidade carregada de competitividade e ego como o caminho para nunca parar de lutar.

Tal como Carole que esperava ver uma peça “sobre a primeira mulher negra a ser eleita primeira-ministra do Reino Unido, ou a ganhar um Nobel na área da ciência, ou sobre uma mulher negra que tivesse subido a pulso para se tornar bilionária, ou sobre outra qualquer que se pudesse considerar um símbolo de sucesso de mais alto nível conquistado de forma legitima” e que viu uma peça de “guerreiras lésbicas que andam pelo palco feitas machonas e que se apaixonam todas umas pelas outras”… também eu estava à espera, neste livro, de mulheres que apesar de todas as dificuldades não conseguissem olhar o mundo, a vida e os outros, com outros olhos que não fossem a empatia em cada momento…

Convenhamos que essas mulheres (ou qualquer outro ser humano) não existem, convenhamos que não tenho o direito de criticar o caminho que, estas mulheres sofridas, escolheram para conseguirem ter a cabeça fora de água, convenhamos que o livro é tão real e humano tanto quanto a realidade e a humanidade o é.

 

No fim do livro não acompanhei a desilusão de Carole com a peça, fiz as pazes com o livro e consegui ver nele a beleza da diversidade feminina e a inteligência com que muitas perspetivas foram interligadas. Gosto do confronto das novas perspetivas com as antigas:

“ouço falar em feminismo e penso logo em carneirada (…) ser mulher já está fora de moda (…) no futuro vamos ser todos não binários, não vai haver homens nem mulheres, aliás os géneros masculino e feminino são construções sociais, ou seja, (…) o teu feminismo está redundante”

“os privilégios são relativos e contextuais, (…) achas que o Obama [por ser preto] é menos privilegiado do que um parolo americano que cresceu num parque de atrelados filho de uma mãe solteira e toxicodependente e de um pai sempre a ir a vir da prisão? E será uma pessoa com um grau elevado de incapacidade é mais privilegiada do que um sírio que foi torturado e anda à procura de asilo político?”


470 páginas

Elsinore

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Na Terra Somos Brevemente Magníficos ∩ Ocean Vuong



É quando leio livros como este que confirmo, em mim, a certeza do quanto é mais fácil e ao mesmo tempo fascinantemente maravilhoso ser o outro pela leitura. Em livros tão intrinsecamente expostos como este, sentimos a pele, o cheiro, a alegria, a felicidade, a tristeza, a solidão… com toda a real relatividade com que elas aparecem na vida de qualquer um de nós.
 
“O problema é que não quero que me retirem a minha tristeza, tal como não quero que me retirem a minha alegria. São ambas minhas. Fui eu que as fiz, que diabo. E se a euforia que sinto não for apenas um “episódio bipolar”, mas algo pelo qual lutei bastante? Talvez eu comece a saltar e te beije com demasiada força no pescoço quando regresso a casa e descubro que é noite de piza, porque às vezes uma noite de piza é mais do que suficiente, é o meu mais fiel e frágil ponto de referência. E se afinal corro para a rua, porque a Lua nesse dia parece saída de um livro para crianças, pairando, enorme e ridícula, acima da fileira de pinheiros, como se fosse uma estrada esfera medieval?”
 
“Cão pequeno” decide escrever uma carta à mãe, mas a mãe não sabe ler, mas a mãe não sabe inglês… mesmo assim o “Cão pequeno” escreve esta carta, que é este livro, cheia de tudo, e tudo com muita honestidade… a carta não tem só episódios e sentimentos, a carta tem vida em toda a sua essência, tem pessoas em toda a sua complexidade… a carta tem muito amor e um buraco grande e preto no lugar perda…
 
“”Eh”, disse, quase a dormir, “o que eras antes de me conheceres?”
“Acho que era alguém prestes a afogar-se.”
Uma pausa.
“E o que és agora?”, sussurrou, cedendo ainda mais ao sono.
Pensei por instantes. “Água.””
 

 

Relógio de Água
215 páginas