quinta-feira, 23 de agosto de 2018

O filho de mil homens ꙮ Valter Hugo Mãe


Valter Hugo Mãe escreve poesia em forma de prosa. Para mim é um absoluto prazer lê-lo, é uma mistura entre um embalo doce de um poema e o mergulho profundo nas emoções que nos preenchem sejam elas boas ou más.
Arrisco-me a dizer que Mãe gosta de lugares pequenos, gosta de observar as ligações que se estabelecem em lugares pequenos em que toda a gente se conhece, gosta de entender em que sentimentos, valores e princípios assentam tais ligações. Para mim, a sua visão que deixa nos seus romances, é crua e absolutamente realista… chega a magoar… mas é descrita de uma forma doce, tão bela, que não deixamos de sentir a luz.
Não é raro, nesses lugares pequenos, as relações serem assentes em padrões de igualdade (igualdade, não normalidade), onde temos que fazer tudo igual, onde temos que sentir tudo igual, onde temos que seguir o mesmo caminho dos outros. Ousar fazer algo diferente, sentir algo diferente, seguir um caminho diferente… não é só diferente… é mau… é errado. Discussão tão antiga esta, onde estão os limites do que é certo e errado? não estão definitivamente no mesmo sítio dos limites do igual e do diferente…
E o ser diferente neste livro passa por se gostar de pessoas do mesmo sexo (assunto que nos inunda hoje em dia), mas passa também (e acho isso maravilhoso) por se continuar a sonhar, independentemente do tamanho dos sonhos, e correr em busca deles contra todos os velhos do restelo que vamos encontrando, passa também por não nos acharmos uns coitadinhos e estarmos bem connosco, mesmo que aos olhos da “nossa gente” nos devêssemos sentir uns coitadinhos porque somos pobres, sozinhos, deficientes…
A minha representação de amor preferida de todos os livros que li, sempre foi a história do Baltazar e da Blimunda, no Memorial do Convento, de José Saramago. Arrisco-me a dizer que a história do Crisóstomo e da Isaura, está lá… está quase lá…
Eu recomendo sempre a leitura, mas recomendo a leitura deste livro, porque é humano, cheio de coisas simples, que todos entendem, todos sentem…

“O homem que chegou aos quarenta anos pescava, cozinhava para si os peixes com paciência e cuidado, sentava-se à mesa a ouvir quem ia estender-se ao sol ou jogar bola ali ao pé do mar. Ouvia aquela companhia, que era uma réstia de companhia ou companhia nenhuma, e comia os seus peixes a pensar que tinha de haver uma solução.
Decidiu que sairia à rua dizendo às pessoas que era um pai à procura de um filho. Queria saber se alguém conhecia uma criança sozinha. Dizia às pessoas que vivia no bairro dos pescadores, porque era um pescador, e dizia que os amores lhe tinham falhado, mas que os amores não destruíam o futuro. Pensava o Crisóstomo que algures na pequena vila haveria alguém à sua espera como se fosse verdadeiramente a metade de tudo o que lhe faltava. E muito pouco lhe importava o disparate, tinha nada de vergonha e sonhava tão grande que cada impedimento era apenas um pequeno atraso, nunca a desistência ou a aceitação da loucura.
Pensava que quando se sonha tão grande a realidade aprende”

272 páginas
Porto Editora






sexta-feira, 10 de agosto de 2018

O Triunfo dos Porcos & George Orwell



É fácil perceber que este livro é uma alegoria que, ao apresentar uma revolução dos animais da quinta à ditadura implementada pelos humanos, mais do que crítica, descreve de forma bem real e crua, o sistema a União Soviética comunista…
Mas vai também mais longe e pode ser aplicado em tantos outros contextos. Sejamos realistas, também a democracia nasceu com a verdade de que “todos os animais são iguais” e neste momento “todos os animais são iguais mas alguns animais são mais iguais de que os outros”.
O problema não é o comunismo ou a democracia, o problema é aquilo que o homem faz com isso ao longo do tempo. O ser humano é dado ao ócio e à preguiça quando o pode ser. Cada ser humano usa umas lentes únicas para ver o mundo e tentar colocar as lentes de outra pessoa dá trabalho, dá muito trabalho. E o verdadeiro problema é que, para além do trabalho que dá, na maioria dos casos ainda prejudica o nosso conforto – o nosso conforto material e o nosso conforto chamado consciência.
Como é que vamos conseguir manter na nossa cabeça as meias verdades que justificam e nos fazem acreditar que temos o direito de ter ordenados de milhões de euros, garagens com mais de trinta carros, mais de dez mansões espelhadas pelo mundo, fronteiras fechadas, escravos sexuais e/ou infantis… se usarmos as lentes dos outros (uma capacidade fantástica que o ser humano possuí e a que se dá o nome de empatia) para ver o mundo?
Se cada um de nós fizer um esforço para ver o mundo pelos olhos dos que estão abaixo de nós socialmente/economicamente e/ou em situação vulnerável o principal problema vai ser nosso… porque isso vai mexer com o conforto, com o nosso conforto, muito nosso. E quanto mais alto estivermos mais teremos que abdicar mas a boa notícia é que também podemos fazer mais pelos outros.
Para mim a frase “todos os animais são iguais mas alguns animais são mais iguais de que os outros” está mal deste o início. “Não, nós não somos todos iguais, mas somos todos pessoas” e temos os mesmos sentimentos, os bons, os maus, todos intensos, e precisamos todos do mesmo, de muito pouco.
“Doze vozes gritavam cheias de ódio e eram todas iguais. Não havia dúvida, agora, quanto ao que sucedera à fisionomia dos porcos. As criaturas de fora olhavam de um porco para um homem, de um homem para um porco e de um porco para um homem outra vez; mas já se tornara impossível distinguir quem era homem, quem era porco.”