segunda-feira, 5 de abril de 2021

Ensaio sobre a Lucidez → José Saramago



 E se de uma forma espontânea, ou pensada, ou calculada, ou combinada, grande parte da população votasse em branco numas eleições??

José Saramago tem, na minha opinião, alguns dons, o inegável dom da escrita é um deles. Os seus livros são “coisas” inteligentes e acutilantes, onde muitos pontos finais, parágrafos e travessões não estão presentes, nem fazem falta, onde se salta de diálogos para reflexões gramaticais, contextuais, descritivas.

Outro dos dons é a capacidade de ter fantásticas ideias para criar as suas estórias. Poderíamos começar logo por duvidar, e eu seriamente duvido, sobre a possibilidade de conseguirmos mobilizar mais de 80% da população a levantar a mesma bandeira política. Mas por isso é que Saramago é tão maravilhosamente bom, porque ao mesmo tempo que tem a coragem e a capacidade de mostrar o quanto o ser humano pode ser absolutamente abominável, e este lado negro agarra-se a nós quando o lemos e sentimo-nos (eu sinto-me) sem qualquer esperança no futuro da nossa espécie, também consegue mostrar o quanto conseguimos ser genuinamente bons, o quanto conseguimos ser genuinamente empáticos, o quanto conseguimos perceber que se abrirmos mão do nosso carater deixamos de ser quem somos e isso não vale a pena, este lado luminoso é tão real e tão sentido que nos sentimos (eu sinto-me) confortados e “quentinhos”. Para mim este é o dom mais precioso de José Saramago, o equilíbrio entre a escuridão e a luz, a relatividade com que ele mergulha nos dois é desarmante, não há música de suspense antes de um mau momento, não existem fogos de artifício antes dos bons momentos, existe tudo e cada coisa na mesma linha de importância.

Mas, e se de uma forma espontânea, ou pensada, ou calculada, ou combinada, grande parte da população da capital de um país votasse em branco numas eleições?

Não é bonita a reação dos governantes, a ânsia por manter e ganhar mais poder pode fazer coisas assustadoras.

A democracia é colocada em perigo com tantos votos em branco?

“que os direitos só o são integralmente nas palavras com que tenham sido enunciados e no pedaço de papel em que hajam sido consignados, quer ele seja uma constituição, uma lei ou um regulamento qualquer, compreendereis, oxalá convencidos, que a sua aplicação desmedida, inconsiderada, convulsionaria a sociedade mais solidamente estabelecida, compreendereis, enfim, que o simples senso comum ordena que os tomemos como mero símbolo daquilo que poderia ser, se fosse, e nunca como sua efectiva e possível realidade. Votar em branco é um direito irrenunciável, ninguém vo-lo negará, mas tal como proibimos às crianças que brinquem com o lume, também aos povos prevenimos de que vai contra a sua segurança mexer na dinamite.”

Mas é colocada em causa e é caricaturada com a resposta dada!

 

Prémio Nobel de Literatura 1998

 

329 páginas

Caminho

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