Gosto de pessoas que dizem o que têm a dizer, no momento
certo, de forma assertiva, sem mascarar a realidade, Arundhati Roy é assim.
Admiro pessoas com personalidades fortes, com convicções e visões do mundo bem
definidas assentes numa ausência de etnocentrismo e numa sensibilidade humana e global
sobre a vida no nosso planeta, Arundhati Roy é assim. É frequente estas pessoas
trazerem desconforto, porque simplesmente colocam o dedo na ferida e não deixam
as consciências adormecerem, Arundhati Roy é assim. São pessoas que não
levantam bandeiras por opção, mas “Porque sou uma árvore. Não posso ser transplantada.
As minhas raízes são profundas e eu pertenço ao meu país. Sentiria saudades das
outras árvores se me fosse embora. Faço parte daquele clima, daquele solo, e
não sei porque haveria de o deixar. Eles que o deixem. Eles que se vão embora.”*
Arundhati Roy afirma que o que se passa no mundo não pode
ficar fora da Literatura*… também ela não pode ficar fora dos seus livros…
“A que casta pertenço? É essa a vossa pergunta? Com uma
agenda política tão grande como a minha, digam-me, a que casta deveria
pertencer? De que casta eram Jesus e Gautam Buddh? De que casta era Marx? De
que casta era o profeta Maomé? Só os hindus têm estas castas, esta desigualdade
incluída nas suas escrituras. Sou tudo exceto hindu. Como Azad Bhartiya, posso
dizer abertamente que renunciei à fé da maioria do povo deste país,
exclusivamente por este motivo. Devido a isso, a minha família não fala comigo.”
“Ela não se parecia com nenhuma das raparigas pálidas e bem
arranjadas que eu conhecia (…) Ela tinha um rosto pequeno, de ossos delicados,
e um nariz direito, com narinas atrevidas e abertas. O cabelo comprido não era
liso nem encaracolado, mas revolto e pouco cuidado. (…) Não era alta, mas tinha
pernas compridas e uma postura, com o peso apoiado na parte da frente dos pés e
os ombros direitos, que era quase masculina, mas ao mesmo tempo não era. (…) A ausência
total do desejo de agradar, ou de por alguém à vontade, podia, numa pessoa
menos vulnerável, ser vista como arrogância. Nela, dava uma impressão de
solidão indiferente. Por trás dos óculos simples, nada modernos, os olhos de
gato ligeiramente inclinados tinham o secretismo despreocupado de um pirómano.
Ela dava a impressão de se ter escapado de uma trela. Como se estivesse a
passear sozinha enquanto nós éramos passeados – como animais de estimação.”
Para mim estes fragmentos (e mais alguns), que pertencem a
personagens diferentes definem-na e por isso seria impossível falar do livro
sem antes falar da escritora.
Mas o livro…. é uma simples e perpétua obra de arte…
Não é surpreendente que, para retratar a Índia dos nossos
dias, duas das personagens principais sejam um transexual e um militante de
Caxemira, mas desenganem-se aqueles que julguem que o que vão ler é a
vitimização destes excluídos. O livro é acima de tudo uma mensagem de força e de
dignidade.
Anjum… [que ao contrário das pessoas que não são como
ele - cuja infelicidade é causada pelo “aumento dos preços, as propinas da
escola dos filhos, os maus-tratos dos maridos, a traição das mulheres, os
motins hindu-mulçumanos, a guerra indo-paquistanesa… coisas exteriores, que acabam por se resolver.”
- tem o motim dentro dele, a guerra
está dentro dele, nunca se resolverá,
é impossível]
…e Musa… [que afirma: “- Sabes o que é mais difícil, para
nós? O que é mais difícil de combater? A pena. É tão fácil termos pena de nós
próprios… aconteceram coisas tão terríveis ao nosso povo… aconteceram coisas terríveis
em todas as casas. Mas a autocomiseração é tão… tão debilitante. Tão
humilhante. Mais do que a Azadi, esta
é agora uma luta por dignidade. E a única forma de mantermos a dignidade é
lutar também. Mesmo que percamos. Mesmo que morramos. Mas, para isso, nós,
enquanto povo… enquanto pessoas vulgares… temos de nos tornar um a força de
combate… um exército. Para fazer isso temos de nos simplificar, de nos
padronizar, de nos reduzir… toda a gente tem de pensar da mesma maneira, de
querer o mesmo… temos de nos livrar das nossas complexidades, das nossas diferenças,
dos nossos absurdos, das nossas nuances…
temos de nos tornar tão tenazes… tão monolíticos… tão estúpidos… como o exército
que enfrentamos. Mas eles são profissionais, nós somos apenas pessoas. Esta é a
parte pior da Ocupação… o que nos obriga a fazer a nós próprios. Esta redução,
esta padronização, esta estupidificação…
(…) esta idiotização… se e quando a alcançarmos, será a nossa salvação.
Tornar-nos-á invencíveis. Primeiro será a nossa salvação, e depois… depois de
vencermos… será a nossa némesis. Primeiro Azadi.
Depois aniquilação. O padrão é esse.”]
…mostram que “Depois de cairmos da face da Terra (…) nunca
mais paramos de cair. E, enquanto caímos, agarramo-nos a outras pessoas em
queda. Quanto mais cedo o compreenderes, melhor. Este lugar onde vivemos, onde construímos
o nosso lar, é o sítio das pessoas em queda. Aqui não há haqeeqat. Arre, nem nós somos reais. Não existimos
realmente.”…
… mas também mostram que “há felicidade nos lugares mais
estranhos e inesperados. E, por mais frágil que seja, tem a sua integridade”*…
… e que por isso “temos de redefinir ou mudar a receita de
felicidade que nos têm tentado impingir. Repensar o que há de verdadeiro quando
nos dizem «isto é progresso», «isto é civilização», «isto é felicidade» ou
«isto é família» - e isso requer muita coragem.”*
463 páginas
Asa*Arundhati Roy em entrevista à Revista E do Expresso na edição de 5 de agosto de 2017
Nenhum comentário:
Postar um comentário