Todos nós procuramos verdadeiramente aquele sítio em que
temos a noção que somos infinitamente frágeis e vulneráveis mas não nos
importamos verdadeiramente com isso. É duvidoso que esse sítio exista mas o
segredo estará na procura e na descoberta… dele… de nós mesmos. De uma forma ou
de outra este assunto aparece em tantos e tantos livros, escrito de tantas e
tantas formas. No “Cidade em chamas” surge na multiplicidade de personagens que,
escusado será dizer, são confrontados com os medos e fantasmas que enterram
para não ter que lidar e admitir a tal infinita fragilidade e vulnerabilidade.
Não há receitas de como devemos lidar com eles, de como podemos ficar em paz
com eles, mas existe sim a grande lição de que teremos que o fazer mais cedo ou
mais tarde.
É um livro grande, onde vamos saltando de história em
história, que em pequenos e em grandes momentos se cruzam, que tem principalmente
Nova Iorque como cenário desde 1959 passando pelo apagão de 1977 até aos dias
de hoje e que aborda o extremismo, a marginalização, a homossexualidade, a violência
contra as mulheres, as drogas, o poder e a liberdade.
Deixo-vos uma reflexão, de uma jovem, sobre a liberdade que é
tão maravilhosa pelo facto de realçar que o imperialismo do eu consegue infetar
todas as pequenas e grandes cenas.
“anarquia (grego anarkhía, -as, falta de chefe) 1. Uma sociedade
utópica constituída por indivíduos que não têm governo e que gozam de liberdade
absoluta.
A PÁGINA DO ENSAIO –
Sobretudo política
Parece que hoje em dia toda a gente fala nisso, desde o “Anarchy
in the U.K.” ao “Up Against The Wall Motherfuckers”. Vamos ao Vault numa sexta
à noite e vemos pelo menos três miúdos com t-shirts brancas com o A maiúsculo
dentro de um círculo pintado na frente. Se calhar até sou um deles. Porque de
certo modo toda a cena punk tem a ver com libertação. Mas depois quando fui ver
a definição acima e pensei bem nisso, comecei a ver uma tensão da qual de
início não conseguia escapar. Por um lado: Liberdade completa. Liberdade para
ser quem eu quiser. Exprimir-me como quiser. Viver onde quiser. Produzir o que
quiser. Sintonizar a música que quiser no meu rádio. Mas também, se quiser,
roubar o teu rádio, privar-te da tua própria música. Da tua utopia. Isto parece
à primeira vista uma objeção infantil; basta introduzires na tua constituição anarquista
ou lá o que for que o limite da liberdade é onde ela começa a infringir a
liberdade dos outros. Mas veja-se um caso ligeiramente mais complicado. Digamos
que sou casada com uma pessoa que não amo. Ou o equivalente anarquista de
casamento. Digamos que tenho um filho. Tenho o direito de me libertar disso e simplesmente
partir. Mas se o fizer, magoo o meu filho. Ou se levar o miúdo , magoo o meu
marido. Mas se escolher não magoar nenhum dos dois, eles estão num certo
sentido a magoar-me a mim. A infração, por outras palavras, está em todo o
lado, e esta cena de liberdade é muito mais confusa do que parece á primeira
vista.
Uma forma possível de fazer a quadratura do círculo, quer-me
parecer, tem a ver com a outra parte de definição acima, “constituída por indivíduos”.
Pergunto-me o que aconteceria se começássemos a pensar em unidades maiores do
que esta. Como se o coletivo não fosse uma coisa que vem depois do individuo,
mas aquilo que vem antes. Que torna o individuo possível. E se pudéssemos simplesmente
definir “gozam de liberdade absoluta” de uma forma mais coletiva? Isso é
possível sequer? Não sei, mas a alternativa atual parece sugerir que o imperialismo
do eu infetou até esta nossa pequena cena. Aconselho os meus homólogos das
t-shirts a começaram a pensar nestas coisas, a sério, porque daquilo que
estamos a construir juntos no fim de contas só vais sobreviver – e talvez nós
próprios também – se conseguirmos ultrapassar estes eus gritantes. Estes eu eu
eu.”
997 páginas
Teorema - Leya
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