sábado, 8 de abril de 2017

Homens imprudentemente poéticos ₪ Valter Hugo Mãe



Existem aqueles escritores que nós reconhecemos porque veem o mundo da mesa forma que nós, dão força aos nossos sentimentos mais presentes e fazem-nos sentir que não estamos sozinhos. Depois existem aqueles que despertam em nós sensações adormecidas que também reconhecemos mas de uma forma longínqua e associadas a algum um momento ou fase da nossa vida. E depois existem os outros que nos transmitem sensações novas, de visões do mundo que não temos, mas que pela sua escrita e descrição conseguimos sentir.

Para mim Valter Hugo Mãe está nesta última categoria. Eu não vejo o mundo como ele, eu não sinto o mundo como ele… antes de o ler.

Um livro extremamente poético onde existe uma melancolia e uma fatalidade que envolve a jovem cega Matsu, o jardim da floresta, o quimono da senhora Fuyu, os animais assassinados por Itaro… onde existem o amor, a inveja, a ira, a bondade… onde existe o fundo do poço, escuro, frio húmido, habitado pelo remorso em forma de fera.

“O oleiro dava-lhe as graças e assim se reconheciam. Sabiam que ambos se debatiam com feras eminentes. Predadores que haveriam de destruir tudo o que de mais sagrado tinham. A jovem Matsu percebia o quimono movido ao vento e sorria tristemente. Tinha dúvida nenhuma de que, como Saburo, sucumbiria também em breve, ineficaz nas palavras, marcada pelo destino.
A criada Kame gritava: musumé, onde estás tu. E a jovem Matsu respondia: no teu coração. A criada voltava a gritar: e mais onde. Matsu respondia: ao sol. Estou aqui encostada ao sol. Era como se o sol se estendesse até tocar no corpo ao abandono da jovem. A criada juntava-se-lhe e culpava-se de parar os trabalhos por um instante. Por vezes, escolhiam a fome em troca de um mínimo de sossego. A felicidade podia acontecer num ínfimo instante, ainda que a fome se mantivesse e até a sentença para sofrer. O sofrimento nunca impediria alguém de ser feliz.”

214 páginas
Porto Editora

domingo, 2 de abril de 2017

O Impiedoso País das Maravilhas e o Fim do Mundo * Haruki Murakami




Tão bom, tão bom , tão bom… Há algum tempo que não lia um livro diferente e surpreendente. Onde não conseguimos imaginar como vai acabar, onde a cada par de páginas achamos que vai acabar de forma diferente e queremos que acabe de forma diferente.

Para mim, mais do que um contador de histórias, Haruki Murakami é um contador de pessoas. Só assim faz sentido tudo o que não tem sentido nos seus livros, porque o que estamos a ler é alguém em toda a sua complexidade. Ele descreve as pessoas na sua simplicidade, nos seus hábitos, nos seus gestos… mas depois vem a “loucura” vêm os circuitos elétricos no cérebro, vem o shuffling, vêm os Semióticos e os Invisíveis, vem a cidade perfeita rodeada por uma muralha e povoada por unicórnios… vem o Fim do Mundo.

Tudo para nos falar de uma aceitação sem resignação. Da capacidade de aceitar o mundo até aquele ponto em que podemos deixar de ser quem somos. Da perceção de que podemos sempre ser nós mesmos independentemente do sítio, das circunstâncias e das pessoas que nos rodeiam.

“Dizes-me que nesta cidade não há lutas, nem ódio, nem esperança. Magnífico! Olha se tivesse forças, eu aplaudia. Mas o facto de não haver lutas, nem ódio, nem desejos significa que também não existe o oposto de tudo isso. Ou seja, não existe alegria, serenidade ou amor. É porque existem o desespero, a desilusão e a tristeza que há alegria. Uma serenidade sem desespero é coisa que não existe em parte alguma. É a isso que eu chamo a "natureza".”

LEYA
565 páginas